Casou-se havia duas semanas. Por isso, em casa dos sogros, a família resolveu que ele é que daria cabo do canário:
— Você compreende. Nenhum de nós teria a coragem de sacrificar o pobrezinho, que nos deu tanta alegria. Todos somos muito ligados a ele, seria uma barbaridade. Você é diferente, não teve tempo de afeiçoar-se ao bichinho. Vai ver que nem reparou nele, durante o noivado.
— Mas eu também tenho coração, ora essa.
Como é que vou matar um pássaro só porque o conheço há menos tempo do que vocês?
— Porque não tem cura, o médico já disse.
Pensa que não tentamos tudo? É para ele não sofrer mais e não aumentar o nosso sofrimento.
Seja bom; vá.
O sogro e a sogra apelaram no mesmo tom.
Os olhos claros de sua mulher pediram-lhe com doçura:
— Vai, meu bem.
Com repugnância pela obra de misericórdia que ia praticar, ele aproximou-se da gaiola. O canário nem sequer abriu o olho. Jazia a um canto, arrepiado, morto-vivo. É, esse está mesmo na última lona, e dói ver a lenta agonia de um ser tão gracioso, que viveu para cantar.
— Primeiro me tragam um vidro de éter, e algodão. Assim ele não sentirá o horror da coisa.
Embebeu de éter a bolinha de algodão, tirou o canário para fora com infinita delicadeza, aconchegou-o na palma da mão esquerda e, olhando para outro lado, aplicou-lhe a bolinha no bico. Sempre sem olhar para a vítima, deu lhe uma torcida rápida e leve, com dois dedos, no pescoço.
E saiu para a rua, pequenino por dentro, achando a condição humana uma droga. As pessoas da casa não quiseram aproximar-se do cadáver. Coube à cozinheira recolher a gaiola, para que sua vista não despertasse saudade e remorso em ninguém. Não havendo jardim para sepultar o corpo, depositou-o na lata de lixo.
Chegou a hora do jantar, mas quem é que tinha fome naquela casa enlutada? O sacrificador, esse, ficara rodando por aí, e seu desejo seria não voltar para casa, nem para dentro de si mesmo.
No dia seguinte, pela manhã, a cozinheira foi ajeitar a lata de lixo para o caminhão, e recebeu uma bicada voraz no dedo.
— Ui!
Não é que o canário tinha ressuscitado, perdão, reluzia vivinho da silva, com uma fome danada?
— Ele estava precisando mesmo era de éter — concluiu o estrangulador, que se sentiu ressuscitar, por sua vez.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE.
Elenco de cronistas modernos.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
Identifique a principal intenção comunicativa do texto acima.
( ) Convencer o leitor de uma opinião.
( ) Contar uma história.
( ) Descrever aspectos físicos de um animal.
As personagens dessa história estavam às voltas com um grande conflito. Qual era esse conflito.
Qual a solução encontrada para resolvê-lo?4
Não foi fácil encontrar essa solução. Transcreva a alternativa que indica o que permitiu encontrá-la.
( ) Uma argumentação.
( ) Uma queixa.
( ) Uma ameaça.
Reescreva as frases, substituindo os termos destacados pelos termos entre parênteses. Faça as alterações de concordância necessárias.
• Você é diferente, ainda não teve tempo de afeiçoar-se ao bichinho. (Eu)
• As pessoas da casa não quiseram aproximar-se do cadáver. (A família)
• Ele precisava de éter — concluiu o estrangulador, que se sentiu ressuscitar. (as pessoas da casa)
• Com repugnância pela obra de misericórdia que ia praticar, ele aproximou-se do cadáver. (eles)
1 Copie do texto “Caso de canário” o que se pede.
• Três palavras trissílabas proparoxítonas.
• Duas palavras oxítonas acentuadas.
Produção de texto
Imagine que a personagem do marido no texto de Drummond tenha convencido uma outra pessoa a fazer o “serviço”.
• Conte quem era essa pessoa.
• Descreva como foi a situação da conversa.
• Deixe claros os argumentos que o marido empregou para convencer essa pessoa.
• Se possível, faça essa outra pessoa contra-argumentar, rebatendo os argumentos do marido.
Atividade enviada por Susana Felix para Professores Solidários.
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